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Por Alynne Nunes

No início deste ano, o governo de Ariquemes, em Rondônia, mandou retirar páginas de livros didáticos que tratassem sobre diversidade de gênero, casamento entre pessoas do mesmo sexo e métodos preservativos[1]. Proposta pela bancada evangélica do município, alegou-se que os livros, enviados pelo governo federal, fazem “apologia à ideologia de gênero”. A proibição contou ainda com apoio popular, a partir de enquete realizada no site da prefeitura[2]. No mesmo sentido, o Ministério Público de Rondônia deu razão à prefeitura, sob o argumento de que os Planos Nacional, Estadual e Municipal de Educação não abordaram o tema gênero[3].

Para colocar a medida em prática, a prefeitura instaurou uma comissão que retirará as tais páginas dos livros, de modo que os alunos e as alunas somente os receberão em março, um mês após o início do ano letivo[4].

A ação adotada pela prefeitura é bastante questionável, pois viola direitos assegurados constitucionalmente. Por isso, vamos abordar, a seguir, quatro perguntas e respostas que tratam do caso de Ariquemes-RO. Vamos a elas?

*

1) A prefeitura pode criar políticas contra a suposta “ideologia de gênero”?

O termo “gênero” foi alvo de polêmica pela bancada religiosa do Congresso Nacional durante a tramitação do Plano Nacional de Educação. Sustentou-se que tratar da pluralidade dos gêneros nas escolas poderia descontruir o conceito tradicional de família, que, de acordo com a doutrina religiosa, é formada pela união entre homem e mulher, cujos papeis são delimitados estritamente[5].

Como já sustentamos aqui no blog, todos têm direito à educação, cujo dever de assegurá-lo é do Estado, segundo o art. 205 da Constituição Federal. Não deve haver distinção de gênero, orientação religiosa ou de qualquer outra natureza: todos somos iguais perante a lei e todos devemos ter acesso à educação.

A relevância de políticas públicas que debatam a pluralidade dos gêneros consiste em criar sociedade mais tolerante e menos preconceituosa. Isso porque, na prática, o ambiente escolar é hostil a alunos e alunas que não se encaixem no padrão de gênero imposto pela sociedade. Esses estudantes sofrem constantemente agressões físicas e verbais no ambiente escolar, o que resulta em maior número de faltas, desinteresse, abandono do curso, depressão e reduzidas oportunidades de emprego no futuro, em razão da baixa escolaridade (ABGLT, 2016).

Não é papel da escola estimular o preconceito. Independente do gênero do estudante, a escola deve proporcionar sua inclusão e fomentar o respeito pelas diferenças. É preciso, por isso, políticas que orientem a comunidade escolar, garantindo o direito à diversidade. É preciso mais conhecimento, em vez de recusá-lo ou ignorá-lo, sob pena de não garantir o direito adequadamente.

Por isso, as ações tomadas pelo governo de Ariquemes-RO não possuem sustentação jurídica, ainda que os Planos Nacional, Estadual e Municipal de Educação não tenham tratado expressamente sobre identidade de gênero e orientação sexual.

Não cabe, além disso, censurar conteúdo de livros sob o argumento de que incentivaria determinada conduta: como todos os temas e assuntos abordados nas escolas, cabe à comunidade escolar debatê-lo criticamente.

 

2) Ainda que tenha amplo apoio da população, a prefeitura pode determinar tal ação?

Embora tenha tido apoio popular, o município não pode violar a Constituição Federal. Como expusemos acima, não há argumentos jurídicos que justifiquem a ação de “retirar páginas” de livros que contrariem dogmas de determinada vertente religiosa. Os governos municipais, assim como os estaduais, distrital e federal, possuem o mesmo dever de obedecer aos direitos constitucionais.

 

3) A religião pode intervir na educação?

O Estado brasileiro é laico desde a instituição da República, em 1889. Isso significa que o Estado não possui religião oficial – como na época do Império, em que a religião católica era a oficial –, mas, por outro lado, garante o livre exercício de qualquer orientação religiosa. É a chamada liberdade de crença, garantida no art. 5º, VI e 19, I, da Constituição.

Por isso, a religião não pode intervir nos assuntos do Estado, entre os quais, a educação. Assim, se o Estado brasileiro pretende perseguir a igualdade e promover o bem de todos sem preconceitos (art. 3º, IV, da CF), as políticas educacionais, por sua vez, devem seguir a essa determinação. Portanto, inexistem argumentos jurídicos que sustentem a inserção de dogmas religiosas em políticas públicas educacionais.

 

4)  O que fazer caso algum aluno ou aluna for vítima de preconceito dentro da escola?

Podemos analisar esta pergunta sob duas óticas: a coletiva e a individual. Isso porque entendemos que o estudante, que for vítima de preconceito, deve tomar medidas que garantam seu próprio direito individual, como pleitear indenização judicial contra os agressores e pedir que o Estado tome medidas para evitar o surgimento de novos casos. Assim, essas últimas medidas possuem caráter coletivo, pois toda a comunidade escolar deve estar disposta a enfrentar tais impasses e construir ambiente diverso e tolerante.

Pedidos de providências podem ser encaminhados para as Diretorias Regionais de Ensino, Conselho Escolar, Secretarias de Educação, Ministério Público, Secretaria de Direitos Humanos, Conselho Nacional de Combate à discriminação e promoções dos direitos de lésbicas, gays, travestis e transexuais (CNCD-LGBT), parlamentares, entre outros agentes. É preciso exigir a tomada de medidas efetivas, uma vez que avanços consideráveis foram tomados nos últimos anos para reconhecer direitos de gênero, amparados na dignidade humana.

 

 

[1] Cf. “Prefeitura manda tirar trechos de livros escolares com união entre gays”. G1, 23/01/2017. Disponível em: http://g1.globo.com/ro/ariquemes-e-vale-do-jamari/noticia/2017/01/prefeitura-manda-arrancar-paginas-de-livros-escolares-sobre-homossexuais.html. Acesso em: 25 jan. 2017.

[2] Cf. “Prefeito e 11 vereadores decidem retirar dos livros didáticos páginas que possam ser interpretadas como ‘ideologia de gênero’”, 24/01/2017. Disponível em: http://ariquemes.ro.gov.br/pma-portal/public/noticias/educacao/prefeito-e-11-vereadores-decidem-retirar-dos-livros-didaticos-paginas-que-possam-ser-interpretadas-como-ideologia-de-genero. Acesso em: 25 jan. 2017.

[3] Cf. Procedimento nº 2016001010003084, Diário da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, n. 225, 01/12/2016, p. 75. Disponível em: https://www.tjro.jus.br/novodiario/2016/20161201114-NR225.

[4] Cf. nota 2.

[5] Cf. argumentos dos parlamentares em matéria do Apublica, “Existe ‘ideologia de gênero’?”, de 30/08/2016. Disponível em: apublica.org/2016/08/existe-ideologia-de-genero/. Acesso em: 25 jan. 2017.

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