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A advogada Alynne Ferreira Nunes, fundadora do escritório, concedeu entrevista à Editora do Brasil sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE. Abaixo, publicamos a íntegra da entrevista, que também pode ser acessada neste link.


Pnae: o que é e por que não podemos abrir mão dele


O Pnae, ou Programa Nacional de Alimentação Escolar, é resultado de uma luta histórica do Brasil contra a desnutrição de crianças e adolescentes. Trata-se também de uma conquista recente: a ideia de oferecer refeições para alunos de escolas públicas data de 1940, mas só conseguimos implementar de fato a ideia em 2009, com a Lei nº 11.947. Precisamos lutar para que estados e municípios cumpram a lei na íntegra.

 

Quem trabalha em escola pública, em periferias de grandes cidades e pelo interior do Brasil, sabe o quanto é importante o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Se usado corretamente, o repasse que o governo federal dá por intermédio do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) ajuda a garantir refeições dignas e balanceadas para as crianças. O valor diário, por aluno, não é alto: R$ 1,07 para creche e ensino integral; R$ 0,36 para ensino fundamental e médio. Parece pouco, mas é suficiente para que o Pnae seja considerado referência mundial quando o assunto é alimentação escolar. Isso porque, ao determinar que 30% do valor repassado a estados e municípios seja usado na agricultura familiar, o programa serve como incentivo à economia local, à agricultura orgânica e ecológica, além de promover o consumo de legumes e frutas locais.

Ao mesmo tempo, o investimento em alimentação escolar de qualidade é constantemente ameaçado por desvios e cortes de verba. Assim como uniformes, material didático e limpeza, os contratos firmados entre empresas fornecedoras locais e prefeituras são difíceis de ser monitorados, pois são numerosos e constantemente a polícia anuncia que descobriu fraudes e superfaturamento. Em 2016, por exemplo, após fiscalização, a Controladoria Geral da União anunciou que descobriu desvios de R$ 2 bilhões na merenda, envolvendo 199 dos 2,7 mil municípios fiscalizados. Vale a pena frisar que a alimentação escolar de qualidade não é favor ou bondade de prefeitos, e sim uma conquista, fruto de décadas de luta. No Brasil discute-se a questão da merenda desde a década de 1940.

É importante que professores, funcionários e pais de alunos saibam que a alimentação de qualidade na escola pública é um direito das crianças e adolescentes, como afirma a advogada Alynne Nayara Ferreira Nunes, mestre em Direito pela Fundação Getúlio Vargas. Ela atua na área de direito escolar e responde a dúvidas sobre o que determina a lei, quais são os direitos das crianças. Leia:

 

Editora do Brasil: Gostaria que falasse um pouco sobre a lei mencionada. Em especial, o que significa “agricultura familiar” dentro do entendimento legal?

Alynne Nayara Ferreira Nunes: A Lei n11.947/09 trouxe regras mais específicas para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), política pública gerenciada pelo governo federal para atender às escolas da educação básica de todo o país. A inovação trazida pela norma consiste na alocação de ao menos 30% dos recursos para adquirir “gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”. Nesses casos, a lei dispensa a realização de licitação, desde que haja observância de regras acerca do controle de qualidade dos alimentos. Com a reserva de ao menos 30% para pequenos produtores e o benefício de realizar a compra sem licitar (mais ágil e com menos burocracia) pretendeu-se atrelar a política de alimentação escolar ao desenvolvimento econômico e social local, além de fomentar hábitos alimentares locais.

O conceito legal específico de agricultura familiar e empreendedor familiar rural advém da Lei no11.326/06, que estabeleceu as diretrizes para a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. São assim considerados aqueles que desenvolvem atividades no meio rural e atendem, simultaneamente, aos requisitos: (a) não possuir área maior que quatro módulos fiscais; (b) utilizar, predominantemente, mão de obra de sua própria família; (c) o percentual mínimo da renda deve se originar de atividades desenvolvidas em seu empreendimento; e (d) dirigir o empreendimento com sua família. Em resumo, podemos afirmar que o conceito de agricultura familiar e empreendedor familiar compreende famílias que trabalham no meio rural, dirigindo o empreendimento em conjunto, em terra de determinado limite, da qual extraem sua renda. Não é preciso, por outro lado, que a agricultura familiar adote sistema de produção orgânico e agroecológicos. No entanto, a chamada pública (que selecionará a proposta mais vantajosa para o governo para a alimentação escolar) pode ser específica e prever que a alimentação seja de origem orgânica ou agroecológica.

Editora do Brasil: A lei também pede que se priorizem alimentos orgânicos e “sustentáveis”. Como jornalista, observo que a prática pode ser transformadora em alguns casos – ajudando a subsidiar pequenos produtores e práticas saudáveis –, mas muitos municípios passam por cima da recomendação. Por que isso acontece?

Alynne: Como enunciado no parágrafo anterior, a Lei no 11.947/09 não especifica se os alimentos devem ser orgânicos e sustentáveis; ela exige que os alimentos sejam variados, seguros e que atendam às exigências do controle de qualidade. Além disso, determinou que ao menos 30% dos recursos sejam direcionados à aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, como forma de estimular o desenvolvimento local e contribuir para o fortalecimento de grupos sociais, suas culturas e tradições.

Por essa razão, não é possível afirmar, uma vez que desconhecemos dados a esse respeito, se os municípios ignoram tal recomendação, uma vez que a lei federal não especifica se os alimentos devem ser orgânicos ou não, mas sim que parte deles deve ser proveniente da agricultura familiar. No entanto, cada município pode criar regras próprias e determinar que os editais das chamadas públicas priorizem alimentos orgânicos. A título de exemplo, no Município de São Paulo há a Lei Municipal no 16.140/15, que torna obrigatória a inclusão de alimentos orgânicos ou de base agroecológica na alimentação escolar das escolas municipais, priorizando aqueles provenientes da agricultura familiar. A própria norma reconhece que os preços desses produtos são diferenciados, motivo pelo qual admite a contratação de alimentos cujo valor seja de até 30% a mais do valor do produto convencional.

Editora do Brasil: Há muitas denúncias de desvio de verba na educação envolvendo merenda escolar. Geralmente, o resultado é uma comida de baixa qualidade, ultraprocessada, no prato das crianças. Como pais e comunidades escolar podem agir na justiça para reverter esse processo?

Alynne: A legislação educacional voltada à alimentação escolar não admite a aquisição de alimentos que não sejam saudáveis. É absolutamente necessário que a merenda escolar contribua para o desenvolvimento físico e mental da criança, que precisa de alimentação balanceada para crescer e se desenvolver adequadamente e ter ganhos de aprendizagem. Os pais e a comunidade escolar devem exigir transparência do Poder Público. Ao observar que as crianças são alimentadas com produtos ultraprocessados e de baixo valor nutricional (como bolachas e sucos industrializados), devem entrar em contato com a prefeitura ou governo estadual (conforme a instituição em que as crianças estão matriculadas) e com Ministério Público, para formular suas denúncias, de modo que essas instituições adotem providências. Encaminhar denúncias à mídia também pode contribuir para tornar o fato público e alterar a merenda ofertada. Além disso, é relevante estimular a associação de pais, alunos e membros da comunidade escolar para exigir esses direitos.

Editora do Brasil: Para concluir, a alimentação saudável na escola pública é um direito? Como fazer esse direito valer?

Alynne: Sim, é um direito constitucionalmente assegurado. A alimentação escolar foi criada no Brasil na década de 1950, como forma de estimular as crianças a frequentarem a escola. Isso porque, naquela época, a maioria da população era rural e estava fora das escolas. Garantir alimentação foi um dos estímulos para que as crianças pudessem ir à escola. Foi um ganho que possibilitou a escolarização da população brasileira e a queda do analfabetismo. Ainda hoje, a alimentação escolar é fundamental para que as crianças e os jovens estejam aptos a desenvolver seu raciocínio e ter ganhos de aprendizagem. É preciso exigir a fiscalização sobre a qualidade das merendas (veja parágrafo acima), exigindo providências das instâncias estatais, a fim de garantir o cumprimento do direito à alimentação escolar.

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