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A formação médica no Brasil é notadamente concorrida. A relação candidato/vaga nos vestibulares é alta e demanda do aluno formação sólida de ensino básico para conquistar a tão sonhada vaga.

Acontece que essa é a realidade de poucos no país, de alunos que tenham suporte educacional, familiar e emocional suficientes para dedicar-se arduamente aos estudos e conquistar uma vaga em instituição de ensino pública. Nas universidades particulares, a situação não é diferente, pois há competitividade acirrada. Além disso, o aluno também precisa ter uma boa formação e despender recursos financeiros vultosos para pagar as mensalidades do curso de Medicina, que costumam custar cerca de dez salários mínimos por mês.

Por isso, os desafios para tornar a formação médica mais acessível e inclusiva são muitos e as políticas de financiamento existentes não são suficientes para promover, de fato, oportunidade para distintos perfis de alunos.

Há ainda que se destacar a necessidade de contratação constante de médicos para o Sistema Único de Saúde, especialmente para cidades do interior, que são as que mais sofrem com déficit de profissionais da área da saúde.

Tratarei abaixo sobre as possibilidades para cursar Medicina no Brasil, com auxílio governamental, os desafios inerentes das políticas públicas, que demandam fiscalização dos órgãos de controle, além do considerável número de brasileiros formados em Medicina no exterior, que enfrentam impasses para revalidação de seu diploma – condição essencial para o exercício da profissão.

O objetivo é de oferecer panorama sobre a formação médica no Brasil, sob o ponto de vista dos auxílios governamentais, seus impasses de ordem prática — que impactam nas políticas públicas de subvenção –, e o caminho trilhado por brasileiros que foram estudar Medicina em países fronteiriços.

Assim, é possível pensar em soluções para os singelos diagnósticos dispostos adiante. Evidentemente, o Direito pode contribuir para esta empreitada, permitindo-se aperfeiçoamento dos programas existentes e que as mudanças ocorram mediante amplo diálogo entre os setores envolvidos.

 

As bolsas governamentais

Para aqueles que não tenham condições de arcar com as mensalidades, há bolsas do governo para alunos oriundos de famílias de baixa renda. É o caso do PROUNI, que exige que o aluno tenha cursado todo o Ensino Médio em escola pública ou tenha sido bolsista integral em escola particular. No caso do FIES, o governo financia o curso ao aluno, que, após a conclusão, deve devolver o valor ao governo com reduzidas taxas de juros.

Cabem às instituições de ensino particulares aferir a situação econômica do aluno para enquadramento no benefício governamental. No caso do PROUNI, é realizado abatimento fiscal. Já no caso do FIES, a faculdade recebe a cada semestre o montante do governo, sendo uma fonte segura e estável durante a duração do curso – isto é, sem riscos de inadimplência. Os recursos do FIES vêm do FNDE/MEC, que ainda conta com prêmios prescritos de apostas lotéricas.

Embora não existam dados sobre esse assunto, observa-se que poucos são os alunos de baixa renda em cursos de Medicina pelo país afora. Esse fator sugere que as fraudes não são inconstantes. Ou seja, alunos oriundos de famílias que não necessariamente se enquadrem como de baixa renda pleiteiam auxílios governamentais, omitindo uma informação aqui e outra acolá. A análise pouco minuciosa das faculdades permite o recebimento do benefício, que não é objeto de reanálise pelo MEC ou outro órgão governamental.

Evidente que nem sempre esses alunos que tiveram uma boa base formativa do ensino básico possuem recursos financeiros suficientes para pagar a mensalidade integral do curso de Medicina. Assim, mesmo não sendo propriamente de baixa renda, pleiteiam o auxílio governamental, com os riscos inerentes, pois, de outra forma, não teriam condições para prosseguir no curso.

Se somente famílias de classe média ou de nível econômico superior podem formar alunos capazes de lograr aprovação no vestibular, dada a dificuldade das escolas públicas em formar vestibulandos de Medicina, os benefícios governamentais na prática ficam disponíveis àqueles que cruzam a linha de chegada e que já possuem a vaga no curso de Medicina. Ou seja, os alunos que sejam de fato de baixa renda não conseguem sequer participar da competição, porque sua formação de ensino básica é deficitária e insuficiente para o concorrido vestibular do curso de Medicina.

Essa distorção dos valores demonstra a dificuldade das políticas governamentais em alcançar o seu público-alvo, afastando o curso de Medicina das camadas mais pobres, que se veem impedidas de ascender socialmente.

 

Cotas

As cotas raciais e sociais, que se constituem de importante conquista para a equidade no Brasil, não raro também são objeto de fraudes[1]. Para as cotas raciais, prepondera o mecanismo da autodeclaração, na qual o candidato se autodeclara preto, pardo ou indígena, independente do seu fenótipo, que pode gerar disparidades caso não submetido adequadamente à avaliação por comissão especializada. Se a fraude for identificada tardiamente, não se avança na garantia do direito a cotas, pois já usufruiu de boa parte do curso.

 

 

Brasileiros cursam Medicina em países vizinhos

O brasileiro, contudo, também procura possibilidades para cursar Medicina no estrangeiro. O Brasil é um país de extensões continentais e há países fronteiriços que oferecem cursos de Medicina com valores muito mais reduzidos do que os do Brasil, como Bolívia, Paraguai e Argentina.

Esses cursos contam um enorme contingente de alunos brasileiros que se aventuram nos países vizinhos, sem necessariamente dominar o idioma espanhol e suas variações locais. Os brasileiros predominam, muitas vezes em número maior do que os nacionais daquele país. Os cursos contam com estrutura precária, muitas vezes de baixa qualidade, cujos registros acadêmicos são armazenados em bases frágeis e sujeitas a alterações maliciosas, resultando em documentos que podem não coincidir com o que de fato o aluno cursou. O governo local pode nem mesmo ter autorizado o funcionamento daquele curso[2].

Em que pesem essas dificuldades, os brasileiros que se aventuram no exterior vão em busca do sonho de tornar-se médico. São comuns os já graduados em outro curso da área da saúde e oriundos de famílias de classe média e classe média baixa, e especialmente provenientes do interior do país. São representantes do Brasil profundo que resistem às adversidades em busca de um sonho que se torna mais factível quando a situação econômica familiar permite o investimento na formação no exterior, a fim de alçar não somente ascensão econômica, mas também social, dentro do grupo a que pertence.

Uma vez formado, cabe ao aluno revalidar seu diploma estrangeiro no país para que então possa requerer registro no Conselho de Medicina. Esse procedimento não é simples.

 

Revalidação de diploma estrangeiro

De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a revalidação de diploma estrangeiro cabe somente às universidades públicas. Essas, por sua vez, podem determinar que o aluno seja submetido ao Revalida para então proceder à análise da documentação estrangeira do aluno.

Desde 2018, foi criada a Plataforma Carolina Bori, que visa facilitar o procedimento de revalidação de diplomas estrangeiros no país. As universidades públicas podem aderir ou não à Plataforma. Aquelas que aderirem, devem analisar o processo dentro de 180 dias e podem determinar que o requerente realize alguma complementação de disciplinas para ter o diploma revalidado. Esse procedimento, no entanto, costuma levar mais de 180 dias, tendo em vista a quantidade de pedidos submetidos às universidades.

Por outro lado, há universidades que não se submetem à Plataforma e, por isso, possuem procedimento próprio para revalidação de diplomas, cujas vagas são disponibilizadas por meio de edital específico.

A Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), por exemplo, divulga processo seletivo com distintas etapas para o processo de revalidação, que envolve análise documental e mesmo a realização de parte do internato do curso – espécie de estágio acadêmico realizado nos dois últimos anos do curso em instituição de saúde do SUS – em hospitais credenciados a instituições de ensino privadas. Essas instituições recebem valores de mensalidades, o que destoa do objetivo da revalidação de um diploma estrangeiro em âmbito de uma universidade pública[3]. Esse arranjo resulta no surgimento de assessorias com a finalidade de auxiliar no procedimento[4].

Há, ainda, caso de instituição de ensino que pretendeu encurtar este caminho da revalidação, longo e tortuoso, permitindo o ingresso de alunos de Medicina, oriundos de países fronteiriços, por meio de transferência. Assim, o aluno terminaria o curso no Brasil, por meio da adaptação curricular, após análise do quanto cursado no estrangeiro[5].

A nebulosidade da regulação, por outro lado, permite que práticas como essas continuem a acontecer e tenham validade jurídica. Nesse sentido, o Parecer n. 787, do Conselho Nacional de Educação, órgão vinculado ao MEC, permite a transferência de alunos do exterior para cursos oferecidos no Brasil, desde que seja realizada a adaptação curricular. A norma ainda não foi homologada pelo Ministro da Educação, quando então passa a gozar de efeitos jurídicos, porém é uma orientação relevante na área.

Nesse sentido, as universidades brasileiras, privadas ou públicas, possuem ainda o direito constitucional à autonomia universitária, que garante a criação de suas próprias regras e capacidade de autogestão. Ainda que o STF tenha jurisprudência no sentido de que a autonomia universitária não significa soberania absoluta das universidades sem observância da legislação nacional (RE 591.398 AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 23 jun. 2009), fato é que esse direito possui preponderância até mesmo na relação das universidades com o MEC.

Assim, muitos temas concernentes à vida acadêmica, como definição de grade curricular, emissão de documentos, entre outros, ficam a cargo da própria instituição de ensino, o que ressalta o amplíssimo conteúdo jurídico da autonomia universitária. Ao não termos uma definição precisa do termo, ou mesmo uma definição legal, a instituição de ensino pode albergar-se nele para prejudicar o alunado, e mesmo alterar documentos de forma criminosa (dado que uma das principais funções das universidades é de atestar, por meio de documentos, a situação acadêmica de cada aluno e registrar suas atividades), sob a pecha da autonomia universitária. A elasticidade do conceito pouco a pouco é questionada nos tribunais.

Por isso, muitos são os desafios para a formação médica e para a revalidação de diplomas no Brasil, país que ainda sofre com a defasagem de profissionais, especialmente em cidades do interior, que ficaram ainda mais desprotegidas com a saída dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos.

Estima-se que há mais de 15 mil profissionais médicos formados no exterior que não conseguiram revalidar seus diplomas no Brasil. Mesmo com a investida de governos e de pedidos no Judiciário para admitir contratação temporária desses profissionais em período pandêmico, não há sucesso, frente à demora na realização das provas do Revalida (a última edição ocorreu em 2017) e da ausência de diploma revalidado[6].

Independente da formação que o médico recebeu no exterior, fato é que as universidades públicas é que devem avaliar a qualidade desse curso e se os componentes curriculares atendem às exigências para exercer a medicina no Brasil. Há, ainda, falta de orientação normativa clara e até mesmo preconceito com relação aos formados no exterior. É preciso desenvolver estudos e mesmo avaliar esse fenômeno para garantir que o profissional possa trabalhar no Brasil mediante teste avaliativo de sua formação, com prazos e critérios claros.

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O norte para a formação médica é a de garantir a distribuição de profissionais em todos os cantos do país, para fortalecer a rede pública de saúde e levar atendimento a todos os brasileiros.

Para atender a este difícil objetivo, o trabalho precisa ser conjunto, e deve envolver criação de políticas públicas que de fato minimizem a desigualdade de oportunidades, desenvolvam critérios claros para a revalidação de diplomas e provoquem atuação constante do Ministério da Educação, Ministério Público, Polícia Federal, Poder Judiciário e instâncias universitárias, para tornar a formação médica de fato mais acessível e meritocrática.

 


*Alynne Nayara Ferreira Nunes é advogada fundadora do Ferreira Nunes Advocacia, escritório especializado em Direito Educacional. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Membro-consultora da Comissão de Graduação e Pós-Graduação da OAB/SP. E-mail para contato: alynne@ferreiranunesadvocacia.com.br.

 

 

 

[1] A título de exemplo, cf. “Fraude em cotas: UnB avalia 90 denúncias e puniu 25 alunos em 2020”, Correio Braziliense, 23 mar. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-superior/2021/03/4913630-fraude-em-cotas-unb-avalia-90-denuncias-e-puniu-25-alunos-em-2020.html. Acesso em: 15 abr. 2021.

[2] Nesse sentido, cf. “Na fronteira pelo diploma médico”, Estadão, 25 set. 2019. Disponível em: https://www.estadao.com.br/infograficos/cidades,na-fronteira-pelo-diploma-medico,1028800. Acesso em: 15 abr. 2021.

[3] Em pedido via Lei de Acesso à Informação (Processo no 23108.039579/2020-50), a UFMT informou que no ano de 2015 foram realizadas 67 revalidações, 311 em 2016, 391 em 2017, 552 em 2018, e 580 em 2019. Em outro pedido por mim formulado (23108.053473/2020-69), a UFMT informou que no intervalo entre 2010 e 2020 foram realizadas 2409 revalidações de diplomas estrangeiros de Medicina. No mesmo pedido, foi informado que as instituições privadas que ofereceram curso de complementação foram: ITPAC (Instituto Tocantinense Presidente Antonio Carlos, em Araguaína/TO), Universidade Brasil (Fernandópolis/SP), UNEC (Centro Universitário de Caratinga, em Caratinga/MG), Centro Universitário São Lucas (Porto Velho/RO). Não há controle a respeito da quantidade de vagas para revalidação de diplomas, pois depende da estrutura de cada instituição de ensino.

[4] “Máfia de diplomas médicos: empresas cobram R$ 130 mil por revalidação”, Folha do ABC, 22 out. 2019. Disponível em: http://www.folhadoabc.com.br/index.php/secoes/saude/item/13889-mafia-de-diplomas-medicos-empresas-chegam-a-cobrar-r-130-mil-por-revalidacao. Acesso em: 15 abr. 2021.

[5] Nesse sentido, foi amplamente noticiado o caso da Universidade Brasil, cuja venda de vagas a alunos do exterior e fraude em bolsas do FIES resultaram na Operação Vagatomia, da Polícia Federal, em setembro de 2019, culminando na prisão do reitor da instituição de ensino e de seus dirigentes. Segundo a PF, até mesmo alunos diplomados no estrangeiro tinham ingressado na instituição de ensino, o que resultaria em espécie de fraude ao Revalida, além de não ter como atestar a veracidade dos documentos enviados pelos alunos. Cf. “Polícia Federal prende donos de universidade por fraudes ao FIES e venda de vagas em São Paulo”, 3 set. 2019. Disponível em: http://www.pf.gov.br/imprensa/noticias/2019/09/policia-federal-prende-donos-de-universidade-por-fraudes-ao-fies-e-venda-de-vagas-em-sao-paulo. Acesso em: 15 abr. 2021.

[6] “Governo e conselhos travam contratação de médicos com diploma estrangeiro na pandemia”, Folha de S. Paulo, 2 abr. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/04/governo-e-conselhos-travam-contratacao-de-medicos-com-diploma-estrangeiro-na-pandemia.shtml. Acesso em: 16 abr. 2021.

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