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Está na pauta a ampliação do auxílio financeiro da União aos Estados e Municípios. Para contribuir com o debate, o artigo desta semana tratará sobre o fundamento jurídico da educação básica nacional e seu financiamento. Para tanto, abordaremos, a seguir (i) como o financiamento da educação básica está estruturado juridicamente, (ii) quais impasses a serem observados e, finalmente, (iii) se há possibilidade de exigir judicialmente a ampliação do auxílio financeiro federal.

 

1) Como está o financiamento da educação básica está estruturado juridicamente?

A educação básica, que compreende o Ensino Infantil até o Ensino Médio, é prestada pelos Estados e Municípios (CF, art. 211, § 2º e § 3º). Trata-se de uma determinação constitucional. Além de prever a obrigatoriedade de prestação do serviço, a Constituição também previu o mecanismo de financiamento, por meio da vinculação de receitas de impostos. Ou seja, segundo o artigo 212, os Estados e Municípios devem reservar, ao menos, 25% de sua receita de impostos para garantir a educação; para a União, esse percentual corresponde a, ao menos, 18%.

Embora não seja atribuição da União prestar diretamente a educação básica, ela deve prestar assistência técnica e financeira aos Estados e Municípios (CF, art. 211, caput). Assim, os Estados e Municípios organizam suas respectivas redes (contratação de professores/as, construção de escolas, gestão do ensino, entre outras ações), mas devem seguir às diretrizes estabelecidas nacionalmente (CF, art. 22, XXIV), além de receber auxílio financeiro da União, quando for necessário.

Para otimizar a distribuição dos recursos vinculados à educação, criou-se, por meio da Emenda Constitucional n. 53/06, o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), que vigerá até 2020. Os recursos do Fundo são distribuídos segundo a quantidade de alunos matriculados na rede presencial, cujos recursos são depositados em conta corrente relativa ao Estado e seus respectivos municípios. A fim de minimizar as disparidades regionais, estabeleceu-se o valor mínimo por aluno para cada etapa de ensino, de modo que cada ente federativo deve alcançá-lo. Caso o ente não disponha de recursos suficientes para atender a esse parâmetro, abre-se caminho para pleitear a complementação da União (ADCT, art. 60, V). Ou seja, o governo federal deve tornar o financiamento igualitário, para que os alunos de todos os locais do país tenham suas matriculas financiadas pelo mesmo valor-base.

No entanto, essa complementação encontra limites na legislação. Em primeiro lugar, a CF previu que, das receitas vinculadas à educação da União (18%), a complementação deve ser limitada a 30% desse percentual (ADCT, art. 60, VIII). Em segundo lugar, até 10% do montante destinado à complementação deve ser direcionado a programas para “melhoria da qualidade da educação” (ADCT, art. 60, VI).

Além disso, houve mitigação do alcance do percentual de 10% com a edição da Lei do Piso Nacional do Magistério (Lei n. 11.738/08), que previu, em seu art. 4º, que esses recursos, destinados à melhoria da qualidade da educação, deveriam ser destinados ao cumprimento do piso salarial do magistério. Na verdade, pela redação da norma, o governo federal deveria ter investido o montante em políticas públicas destinadas a impulsionar salto de qualidade  nas localidades que receberem a complementação. Optou-se, por isso, em fixar interpretação restritiva sobre o alcance do dispositivo do ADCT, limitando, também, o auxílio destinado à complementação do piso salarial.

A regulação do MEC (Resolução nº 7/2012) determinou, ainda, que somente os Estados que fossem beneficiários da complementação do FUNDEB teriam direito à complementação do piso salarial. Dessa forma, um Estado ou Município que alcançou o valor mínimo por aluno, mas possui dificuldades orçamentárias para garantir o cumprimento do piso salarial, não será beneficiado. Atribuiu-se, novamente, interpretação restritiva da regra. É claro que os recursos públicos são limitados e que a União – assim como qualquer ente federativo – deve se pautar pela eficiência (CF, art. 37) e atender às disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas é necessário e salutar incrementar os investimentos na educação básica, a fim de impulsionar o desenvolvimento econômico e social do país. A União, por ser a principal arrecadadora de tributos, deveria ampliar seu papel no financiamento da educação. Trata-se, na verdade, de uma opção política. Caso amplie os investimentos e construa políticas públicas sólidas e com baixo grau de intervenções, o próprio país colherá os frutos da boa educação no futuro.

A partir desta breve explanação, pretende-se, a seguir, apontar quais os impasses gerados pela disparidade na relação entre União e Estados e Municípios. Essa situação torna-se ainda mais destacada em um cenário de crise política e econômica, bem como em virtude dos debates para tornar o FUNDEB permanente no texto constitucional, nos quais os entes federativos têm exigido maior aporte de verbas pela União[1].

 

2) Impasses

2.1) Garantir o piso nacional do magistério

Dados do MEC de 2016 demonstram que menos da metade dos Municípios e cerca de dez Estados não conseguiram atingir o piso nacional do magistério[2]. As professoras e os professores dessas localidades recebem menos do que foi estabelecido nacionalmente. Para 2017, o valor do piso foi definido em R$ 2.298,80 (Portaria Interministerial n. 8, de 26/12/2016).

Sob a ótica jurídica, por que é relevante atender ao piso nacional do magistério? Porque dá cumprimento a um dos pilares do FUNDEB, qual seja, a valorização do docente, a fim de garantir estabilidade, remuneração digna e plano de carreira. Ao não atender integralmente a esse objetivo, tem-se que o FUNDEB chegará ao término de sua vigência, em 2020, sem ter alcançado seus propósitos constitucionais.

Em valores correntes, o total de recursos repassados para os entes beneficiados pela complementação do piso foram:

Ano

Valores correntes (R$)

2009
2010
2011 908.431.083,49
2012 978.372.817,12
2013 1.082.765.439,78
2014 1.155.459.177,62
2015 1.208.499.822,53
2016 1.256.306.985,20
2017 1.297.373.718,52

                                   Fonte: Pedido de Informação feito ao FNDE, sob nº 23480000884201707.

 

2.2) Necessidade de atentar a padrão de qualidade (CAQi e CAQ)

O Custo Aluno Qualidade-Inicial (CAQi) e o Custo Aluno Qualidade (CAQ) foram previstos pelo Plano Nacional de Educação (PNE) (Lei n. 13.005/14), com o objetivo de inserir critérios qualitativos para o financiamento da educação básica.

No CAQi, os critérios são definidos com base em padrões mínimos estabelecidos pela legislação educacional – daí porque é denominado inicial – cujo financiamento deve levar em consideração os “insumos indispensáveis ao processo de ensino-aprendizagem” (Estratégia 20.6). O CAQi já deveria ter sido implementado desde junho de 2016, após prazo de dois anos da vigência do PNE (Estratégia 20.6).

Já o Custo Aluno Qualidade (CAQ) tem como parâmetro os investimentos em qualificação e remuneração do corpo docente, manutenção, conservação e construção de instalações e equipamentos necessários ao ensino, aquisição de material escolar, alimentação e transporte escolar (Estratégia 20.7). O CAQ deverá ser definido em até junho deste ano, quando termina o prazo de três anos fixado pelo PNE (Estratégia 20.8).

O PNE determina a complementação dos recursos pela União para os Estados e Municípios que não atingirem aos CAQi e CAQ, na forma da lei (Estratégia 20.10).

Em que pese o esforço em delimitar parâmetros mais claros relativos à qualidade do ensino, a ausência de regulamentação impede a efetiva vigência dos dispositivos. Há que se considerar, todavia, que, quando regulamentados, a União deverá prestar auxílio financeiro. Questiona-se, por outro lado, seu grau de apoio, em função da limitação de gastos públicos determinada pelo Novo Regime Fiscal (EC nº 95/16).

2.3) Novo Regime Fiscal

O Novo Regime Fiscal foi instituído pela Emenda Constitucional nº 95/16 e determinou que as despesas públicas serão limitadas às despesas primárias efetuadas no exercício orçamentário anterior, corrigidas por índice inflacionário (ADCT, art. 107, § 1º). O Novo Regime Fiscal afeta apenas os recursos federais, e deve viger por até 20 anos (ADCT, art. 106). Assim, todas as despesas primárias devem obedecer ao limite, sob pena de ser aplicada uma série de medidas restritivas à gestão do orçamento público (ADCT, art. 109).

Formalmente, o Novo Regime Fiscal não alterou as regras do FUNDEB, que são aquelas que otimizaram a aplicação dos recursos vinculados para a educação. Isso porque as transferências constitucionais e a complementação do FUNDEB, fontes que compõem o Fundo, não foram atingidas (ADCT, art. 107, § 6º, I). Assim, seus recursos continuarão sendo contabilizados segundo o movimento arrecadatório, e não segundo à limitação orçamentária. Mas isso, importante destacar, apenas com relação ao FUNDEB.

Como vimos acima, a maneira como o FUNDEB foi regulamentado, especialmente após a criação da Lei do Piso do Magistério, mitigou o alcance interpretativo de seus dispositivos que determinavam o auxílio financeiro (complementação federal) da União. Na verdade, o Novo Regime Fiscal impede que a União amplie seus investimentos diretos em educação – que não ocorrem via transferências constitucionais, mas sim via despesas primárias –, uma vez que o parâmetro será limitado às despesas do exercício orçamentário anterior, corrigidas por índice inflacionário. Nesse sentido, cf. o teor do art. 110 do ADCT:

Art. 110. Na vigência do Novo Regime Fiscal, as aplicações mínimas em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção e desenvolvimento do ensino equivalerão:  (Incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016)

I – no exercício de 2017, às aplicações mínimas calculadas nos termos do inciso I do § 2º do art. 198 e do caput do art. 212, da Constituição Federal; e  (Incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016)

II – nos exercícios posteriores, aos valores calculados para as aplicações mínimas do exercício imediatamente anterior, corrigidos na forma estabelecida pelo inciso II do § 1º do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.  (Incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016)

3) Como a União pode destinar mais recursos à educação básica?

A partir da análise jurídica, percebeu-se que a União pouco investiu para tornar a prestação da educação de fato igualitária, pois não atendeu à complementação para garantir o piso salarial do magistério, assim como impôs limitação à interpretação da complementação federal do FUNDEB. Dessa forma, o FUNDEB, que deve viger até 2020, não terá atingido seus próprios objetivos.

Ao observar a situação de forma prospectiva, tem-se a necessidade de ampliar os investimentos da União em educação. Dessa forma, abre-se caminho para tornar efetivo o modelo de financiamento da educação para a qualidade, pautados pelos CAQi e CAQ, ambos determinados pelo PNE.

No entanto, o cenário financeiro aponta para a manutenção ou redução do auxílio federal ao financiamento da educação básica, uma vez que, com o Novo Regime Fiscal, impôs-se limitação às despesas primárias da União, o que é potencialmente capaz de afetar as políticas públicas educacionais[3].

Questiona-se, por isso, se há meios jurídicos para exigir a ampliação da complementação federal da União. Não é justo que a oferta e a qualidade da educação básica pública nacional sejam afetadas pela interpretação restritiva que a União atribuiu aos dispositivos que tratam do financiamento. Sendo assim, entendemos que é possível questionar juridicamente o posicionamento do governo federal e, portanto, pleitear ordem judicial que garanta o repasse de recursos, tornando viável o cumprimento integral do direito constitucional à educação.

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Referência

NUNES, Alynne Nayara Ferreira. O FUNDEB NA PRÁTICA: Uma análise jurídica dos desafios para a implementação de políticas públicas no Brasil. 2016. 96 f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. São Paulo, 2016.

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Alynne Nayara Ferreira Nunes é advogada na área do Direito Educacional e mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Contato: alynne@ferreiranunesadvocacia.com.br.

[1] Trata-se da PEC 15/2015. Cf., também, “Debatedores sugerem melhor distribuição de recursos públicos ao Fundeb”. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/EDUCACAO-E-CULTURA/524265-DEBATEDORES-SUGEREM-MELHOR-DISTRIBUICAO-DE-RECURSOS-PUBLICOS-AO-FUNDEB.html. Acesso em: 17 mar. 2017.

[2] Cf. “Menos da metade dos municípios declararam cumprir o piso dos professores em 2016”. EBC, 12/01/2017. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-01/menos-da-metade-dos-municipios-declararam-cumprir-o-piso-dos-professores-em. Acesso em: 17 mar. 2017.

[3] Já externamos preocupação no mesmo sentido em artigo publicado no blog, em 1º de março deste ano, acerca da Reforma do Ensino Médio. Cf. “Análise jurídica da Reforma do Ensino Médio”. Disponível em: https://ferreiranunesadvocacia.com.br/analise-juridica-da-reforma-do-ensino-medio/. Acesso em: 17 mar. 2017.

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