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Presos durante a ditadura militar, alunos da USP perdiam seus vínculos acadêmicos por não terem realizado matrículas por dois períodos consecutivos. Ao deixarem a prisão, formulavam pedido administrativo para retomar os estudos. No entanto, o indeferimento era uma constante, pautada em regra regimental que não admitia exceções.

Embora o formalismo administrativista tenha predominado, o argumento não era suficiente para contemplar a dimensão da controvérsia jurídica. Os alunos então impetravam Mandado de Segurança, com fundamento no direito à educação e na impossibilidade de realizar matrícula durante o período de prisão, o que lhes garantia o restabelecimento do vínculo acadêmico pelo Poder Judiciário (USP, 2018, V. 2, p. 10).

Essa foi uma das repercussões da ditadura militar sobre os alunos da USP, conforme consta do Volume 2, da Comissão da Verdade da USP, intitulado “Mandados de Segurança”, publicado em 2018, que lista a trajetória dos discentes que, além da perseguição política, sofreram restrições em seu direito à educação.

Em decisão favorável a aluno, o Dr. Newton Martins Costa, juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo, destacou, no ano de 1975 (ibidem):

A digna autoridade impetrante, para praticar o ato de indeferimento, escorou-se numa interpretação fria e literal da lei, desvinculando-a de sua finalidade social e das peculiaridades que o caso apresentava. O Direito contudo, não é uma ciência exata, mas humana, que visa, entre outros fins, a realização da justiça social.

O trecho pode servir como bússola para a interpretação do direito em casos educacionais: os regimentos, embora tenham sua razão de ser, coexistem num sistema jurídico mais complexo, composto por regras de sustentação de status constitucional, com a finalidade de atingir a justiça social.

Ao afirmar que o direito “não é uma ciência exata, mas humana”, ressaltou o magistrado sobre a necessidade de interpretação, tarefa essencialmente humana, cujo raciocínio deve contemplar variáveis para além da mera subsunção fato e norma regimental.

A prevalência do “direito regimental”, contudo, ainda é uma constante nos tempos atuais. Com fundamento na autonomia universitária, as instituições de ensino criam regras internas, com a finalidade de organizar-se, porém há situações em que a interrupção do vínculo pode ocorrer de maneira sucinta, desproporcional e injusta, a partir de interpretação do regimento.

É verdade que o adensamento jurídico da temática ganhou mais envergadura: os tribunais têm entendido que atos capazes de repercutir negativamente na trajetória do aluno devem ser precedidos de direito de defesa.

No entanto, para além do direito de defesa, há também a necessidade de considerar os prejuízos causados ao aluno como parâmetro interpretativo, uma vez que é titular do direito constitucional à educação.

Ou seja, se o pleito consiste em restabelecer o vínculo, qual seria o prejuízo à instituição de ensino? Um aluno que já estava no final do curso, mas teve seu vínculo interrompido abruptamente por regra regimental, poderia prejudicar a instituição de ensino em que sentido?

Por outro lado, mais evidentes são os prejuízos causados ao aluno: perda do que cursou – uma vez que a interrupção do vínculo impede inclusive a transferência para outra instituição de ensino –, perda de oportunidades, de continuidade de vínculos acadêmicos, de eventualmente estudar sob a grade atual, atraso em sua formação, descontinuidade de seu projeto profissional, repercussão em sua saúde mental, redução de propostas de trabalho mais atrativas…

O aluno deve ter direito à continuidade do vínculo educacional, cuja relação contratual pressupõe esforços conjuntos para que o estudante conclua o curso pretendido, que somente pode ser interrompido por justa causa.

Ou seja, a interpretação dos contratos e das relações jurídico-educacionais precisa contemplar a finalidade social do direito à educação, já que pretendemos, enquanto sociedade, que as pessoas avancem em seus projetos de estudos, alcançando níveis mais avançados do ensino (CF, art. 208, V).

Para a relação jurídico-educacional não é suficiente a aplicação regulamentar, sem considerar outros parâmetros, como a proporcionalidade, a justa causa e quais os prejuízos potencialmente gerados às partes – em especial, ao aluno, diretamente interessado na conclusão do curso – na hipótese de interrupção abruta do vínculo.

Por isso, as experiências de tempos difíceis evocam que o direito à educação possui densidade jurídica mais elevada, pois o vínculo e a continuidade dos estudos são fatores preponderantes para balizar a interpretação das regras jurídicas, no sentido de assegurar a observância de direitos constitucionais — que devem sempre predominar sobre as regras regimentais.


*Alynne Nayara Ferreira Nunes é sócia do Ferreira Nunes Advocacia, escritório especializado em Direito Educacional. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. E-mail para contato: alynne@ferreiranunesadvocacia.com.br.

 

 

 

 

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