Em 1925, uma lei do Estado americano do Tennesse proibia o ensino da teoria evolucionista de Charles Darwin. Ainda assim, o jovem professor John Scopes decidiu apresentar a teoria a seus alunos, que o denunciaram por contrariar a teoria bíblica do criacionismo. Sujeito a julgamento, o caso de Scopes acendeu o debate sobre a liberdade de ensino dos docentes e a importância de se garantir a liberdade de pensamento e ao conhecimento.

 

O ator Dick York, que representou o professor Scopes, na adaptação do caso para o cinema (Inherit the Wind, Dir. Stanley Kramer, 1960)
O ator Dick York, que representou o professor Scopes, na adaptação do caso para o cinema (Inherit the Wind, Dir. Stanley Kramer, 1960)

A relevância desse caso reside no protagonismo dos direitos individuais em uma sociedade democrática. A pluralidade de ideias deve prevalecer porque a própria ideia de democracia pressupõe a liberdade de expressão como direito capaz de garantir as múltiplas formas de manifestações humanas.

A liberdade de ensinar – ou liberdade de cátedra – deriva da liberdade de expressão, além de ser uma via de mão dupla: a liberdade de ensinar coexiste com a liberdade de aprender. O professor tem o direito de ensinar e não sofrer qualquer constrangimento de terceiros ou do Estado. Sua profissão tem como base o conhecimento, a descoberta de algo novo, a alteridade, a reflexão, a comparação e a crítica sobre diversos fatos da vida. Frustrar as possibilidades, nesse contexto, significa minar sua atuação, descaracterizá-la, reduzir sua importância para o desenvolvimento humano e social. Frustrar a liberdade de ensinar significa frustrar a liberdade de pensar.

O direito à liberdade de expressão, por sua vez, não é absoluto, razão pela qual não se admite que a honra de outra pessoa seja afetada, fazendo nascer o direito à responsabilização – cível, penal e administrativa. O direito à liberdade de expressão não é uma carta branca que autoriza qualquer tipo de manifestação, pois proíbe justamente aquelas que afetem direitos de outras pessoas.

O aluno que se insurge contra o professor porque alega que seu posicionamento é “doutrinário” deve, num ambiente democrático, expor seus argumentos e pugnar pelo estímulo ao debate sadio. A discordância faz parte de uma sociedade plural. Não é preciso concordar, mas estar ciente da posição do outro e respeitá-la. Por essa razão, a sociedade deve estimular ações fundadas no diálogo. A “Escola sem partido”, cujo objetivo é denunciar supostas doutrinações dos professores contra os alunos, está contribuindo para a já acirrada polarização de nossa sociedade. Os alunos também possuem o direito de ter acesso a opiniões e informações distintas para formar sua própria opinião. Não são seres altamente vulneráveis que poderiam ser doutrinados apenas e tão somente – perdoem a necessária redundância – por conta de posicionamento de seu professor.

Além disso, não há um campo neutro, capaz de distinguir quais seriam ou não os posicionamentos doutrinários a que os alunos não deveriam ter acesso. Vetar posicionamentos, sem justificativa plausível, é o mesmo que censurar, restringir o repertório de temas, informações, opiniões e interpretações sobre diversos fatos da vida humana. Questiona-se até mesmo se dominamos alguma verdade absoluta; sendo elas relativas, o debate está sempre aberto a indagações, cujos posicionamentos serão constantemente colocados à prova circunstancialmente. Estimular a reflexão e o pensamento crítico são as melhores ferramentas para que os alunos formem suas próprias opiniões, saibam formular suas dúvidas e críticas em sala de aula e, assim, contribuir para impulsionar o relacionamento democrático em sua comunidade escolar.

 

No plano jurídico nacional, quais são as normas que asseguram a liberdade de ensinar?

 

“Constituição Federal

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (…)

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; (…).”

 

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Darcy Ribeiro – Lei n. 9.394/96)

“Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;

IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância; (…).”

 

Ambas as normas se referem a todas os níveis de ensino. Professores da educação infantil aos professores dos mais altos níveis da pós-graduação devem ter seu direito à liberdade de cátedra assegurado, uma vez que consiste na razão de ser do direito à educação.

Normas específicas dos entes federativos e/ou da própria instituição de ensino também devem corroborar o direito à liberdade de cátedra. Elas não podem contrariar o quanto disposto na Constituição Federal e LDB, normas basilares a respeito do tema.

Além disso, há decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que reforçam o caráter fundamental do direito à liberdade de cátedra. Trata-se de dois casos paradigmáticos (MS 17.108 e HC 40.910), julgados durante o período da ditadura militar. Em ambos, questiona-se se ato de professor, que supostamente teria agido para propagar ideais comunistas, poderia ser considerado crime contra a segurança nacional.

As decisões convergem no sentido de que a liberdade de cátedra deve ser garantida, e que o docente tem direito de expor suas opiniões e críticas, ainda que contrariem a ordem predominante. O Ministro Victor Nunes Leal, no HC 40.910, cita em seu voto o caso julgado pela justiça norte-americana: Sweezy vs. New Hampshire, na qual o professor, que se declarava socialista, se insurgiu contra a investigação oficial sobre suas aulas que criticavam a ordem política e social. Os trechos a seguir elucidam o voto do Ministro e demonstram o posicionamento a respeito da liberdade de cátedra:

“Ainda não há – dizia êle [Chef Justice Warren]– verdades completas, porque os diversos ramos do conhecimento não foram esgotados, muito menos no campo das ciências sociais, onde poucos princípios (se houver algum) podem ser tidos como absolutos. Se a universidade não pudesse, livremente, investigar os problemas do homem e da sociedade, a comunidade americana corria o risco de estagnar e perecer”. (HC 40.910, p. 1324)

[Nesse sentido, o futuro do Brasil] “depende do espírito de criação dos homens de pensamento, principalmente dos jovens, e não há criação, no mundo do espírito, sem liberdade de pensar, de pesquisar, de ensinar”. (HC 40.910, p. 1326)

Considerando que as decisões foram tomadas durante o período autoritário, tem-se que a Constituição Federal de 1988 incrementou a proteção ao direito de liberdade de cátedra.

 

O que fazer, caso tenha sido acusado de “doutrinação ideológica”?

O professor pode ser acusado de “doutrinação ideológica” por parte de seus alunos. Sua obrigação consiste em atender ao plano pedagógico ou ao plano de ensino entabulado pela instituição de ensino. No entanto, a forma como as aulas serão ministradas cabe ao próprio professor, que tem o direito constitucional de liberdade de cátedra, que não se sujeita a limitações que tenham caráter censório.

Para assegurar o cumprimento de seu direito, veja as seguintes medidas que podem ser consideradas:

  • Caso haja conteúdo ofensivo na internet e em outros espaços públicos são cabíveis ações contra os alunos para responsabilização penal (crimes de injúria, calúnia e difamação) e responsabilização cível (indenização por danos morais);
  • Caso os alunos proponham ação judicial, com o objetivo de censurar sua liberdade de expressão, é possível apresentar defesa e exigir indenização por danos morais;
  • Considere apresentar a situação à diretoria da instituição de ensino para que lhe ofereçam suporte e orientem os alunos sobre a liberdade de expressão do professor, a importância da alteridade, e que é possível discordar de forma democrática. Caso a instituição de ensino, ciente da situação, não tome medidas, é possível considerar, também, sua responsabilização, em virtude de não ter propiciado o exercício pleno de seu direito constitucional;
  • Caso ainda não tenha havido processo, considere esclarecer, via redes sociais e/ou outras formas de contato com os alunos, sobre seu direito de liberdade de expressão e de cátedra, e que é possível discordar; no entanto, os autores de manifestações consideradas ofensivas poderão ser responsabilizados civil, penal e administrativamente;
  • Você sempre terá, em qualquer das hipóteses, o direito ao contraditório e à ampla defesa.

 

 

Alynne Nayara Ferreira Nunes é advogada fundadora do Ferreira Nunes Advocacia. E-mail para contato: alynne@ferreiranunesadvocacia.com.br. Contate-nos, também, via Whatsapp: 11 970491696.

 

 

Referências

Inherit the Wind, Dir. Stanley Kramer, 1960.

RECONDO, Felipe. STF e um recado para quem defende a Escola sem Partido. Jota, 23 jun. 2016. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/supremo-e-um-recado-para-quem-defende-escola-sem-partido-23062016. Acesso em: 9 abr. 2018.

 

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